Novo Fundeb alterou as formas de repasse de recursos, o que vem causando confusão entre gestores. Dispositivos como CAQ e SNE ainda não têm regulamentação
Em agosto de 2020, a Emenda Constitucional 108 (EC 108) foi promulgada, prometendo ser um divisor de águas no financiamento da educação brasileira. O texto, que constitucionalizou o novo Fundeb e dispositivos como o Custo Aluno-Qualidade (CAQ), trouxe avanços importantes como o aumento dos recursos destinados à educação e novas lógicas de repasse que incorporaram a correção de injustiças e iniquidades sociais e regionais. Mas, passado um ano da promulgação da EC 108, os gestores ainda não têm clareza sobre alguns dos mecanismos, e o CAQ segue distante de se materializar.
Entre as conquistas do texto aprovado em 2020 estão o aumento da complementação de repasses financeiros da União de 10% para 23%, com recursos novos; a constitucionalização do CAQ como parâmetro para qualidade adequada da educação e como mecanismo de controle social; a incorporação do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Sinaeb) como política que avalia a qualidade educacional por meio de indicadores que ampliam a visão de qualidade para além das avaliações externas de larga escala; e a aprovação de sistema híbrido de distribuição de recursos. Esse sistema é mais equitativo, garante mais matrículas e qualidade para redes de ensino que têm menos recursos sem desestruturar nenhuma rede. Além disso, o texto proíbe o desvio dos recursos de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE) para o pagamento de aposentadorias e garante que 70% dos recursos sejam destinados para a valorização das profissionais da educação – e não apenas profissionais do magistério, como a lei anterior.
“Considerando não apenas o contexto político mas o momento do país, acho que conseguimos aprovar um texto com muitos avanços”, avalia a deputada Professora Dorinha (DEM-TO), relatora do projeto de lei que culminou na EC 108 e também da lei de regulamentação. Ela lembra que o debate foi prejudicado pelo início da pandemia no país, já que o Fundeb anterior tinha prazo de vigência até dezembro de 2020.
Após a promulgação da Emenda Constitucional, houve ainda a tramitação do Projeto de Lei (PL) de regulamentação do Fundeb, que também foi objeto de acirrada disputa. As propostas diferiam em pontos importantes, como os fatores de ponderação (que ajustam os repasses a depender das etapas e modalidades de ensino), e todo o processo de votação foi marcado por investidas privatistas – parcialmente contornadas-, que abriam margem para convênios com instituições privadas. Foi apenas no dia 17 de dezembro que a regulamentação foi finalmente aprovada, tornando-se lei oito dias depois (Lei 14.113/2020) e permitindo que o novo Fundeb pudesse entrar em vigor em 2021.
“Mudamos o desenho do Fundeb, mais que dobrando a complementação da União. Conseguimos dar prioridade à educação infantil sem entrar no caminho de voucher. A regulamentação e implementação são processos lentos, envolvem estruturas muito pesadas e capilarizadas, tanto que inserimos um período de transição. Os sistemas ainda estão se organizando, temos elementos que requerem ainda ajustes em termos conceituais”, acrescenta a deputada Professora Dorinha.
Confusões, problemas e morosidade
O salto nos repasses vindos da União deve acontecer progressivamente, chegando a 23% apenas em 2026. A previsão é que em 2021 ele aumente de 10% para 12%, sendo que estes 2% significariam R$ 3.2 bilhões a mais (o balanço que confirma esses valores sai no ano que vem). Em 2021, sob vigência do novo Fundeb, o governo federal fez vários repasses errados a estados e municípios. Em janeiro, R$766 milhões foram repassados equivocadamente, com três estados recebendo mais do que deviam e seis recebendo a menos. Em maio, os erros foram em um repasse de R$836 milhões, que desconsideraram milhares de matrículas. Especialmente, a destinação de 70% dos recursos para pagamento de profissionais da educação vem trazendo confusão – e sem posição clara do governo federal.
A confusão se dá porque a vinculação anterior, de 60%, destinava-se a “profissionais do magistério”. O novo Fundeb aumentou o escopo de profissionais elegíveis, mas ainda não há total clareza sobre quem está e quem não está incluído entre “profissionais da educação”, especialmente se essa definição deve ficar vinculada à formação. Dessa maneira, muitos gestores não estão aplicando os recursos devidos com medo de punições posteriores. Até o início de setembro, haviam mais de 1.500 pedidos de esclarecimento de prefeituras ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), como informou reportagem da Folha de S. Paulo.
Para Alessio Costa Lima, Presidente da União dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) Região Nordeste, ter segurança e precisão sobre quem pode ser pago e onde exatamente gastar cada recurso é o ponto de maior confusão para gestores sobre o novo Fundeb. Na avaliação de Alessio, a insegurança vem do fato de que muitas regras ainda não foram totalmente definidas, e isso em um modelo que traz novos mecanismos de repasse e de vinculações. Por exemplo, com o Valor Aluno Ano Total (VAAT), que pela lei deveria ter sido publicado até junho para que a complementação começasse em julho.
Foi pelo VAAT que vieram os R$3.2 bilhões incorporados ao novo Fundeb em 2021, destinados a ao menos 1364 municípios de 25 estados da federação. E tem gerado confusão porque o artigo 28 da lei de regulamentação determina que ao menos 50% do valor repassado pelo VAAT deva ser aplicado na educação infantil. Mas é preciso que o INEP faça um cálculo do indicador para aplicação dos recursos da complementação VAAT na educação infantil. E a metodologia deste cálculo, que foi publicada e está em vigor, ainda é provisória. “Até o momento, a forma apresentada pelo MEC do indicador da educação infantil deixa a desejar”, opina Alessio, da Undime. “Ela leva em conta índices como nível socioeconômico, população e taxa de atendimento da educação infantil, mas para calcular taxa de atendimento são preciosos dados populacionais, o que não temos. Os cálculos foram feitos de forma linear, desconsiderando que nascem cada vez menos crianças, por exemplo. As fórmulas precisam ser mais discutidas e amadurecidas”, argumenta ele.
Outro mecanismo de repasses de recursos da União também está sob disputa. O VAAR, que vai ser responsável por 2.5% dos 23% da complementação da União e pretende colaborar para diminuir desigualdades por meio da redistribuição dos recursos. É um grande avanço do novo Fundeb, como destaca o professor Eduardo Januário, da Faculdade de Educação da USP (FEUSP): “É a primeira vez na história que se incita o Estado a cumprir a promoção da equidade através de políticas educacionais”.
O VAAR ainda não está em vigor, mas seus critérios não são consenso. Aléssio Lima, da Undime, destaca que o contexto da pandemia deveria inclusive alterar os critérios do VAAR. “A destinação se dá com base no desempenho, mas não se pode usar o indicador baseado em 2020, como prevê a lei. Foi um ano atípico, com muitas desigualdades na oferta do ensino. Distribuir os recursos com base nisso reforçará ainda mais as desigualdades educacionais, privilegiando redes que já tinham maior infraestrutura. E também não está posta a forma de cálculo para mensurar o desempenho e a evolução das redes de ensino”, alerta.
Fatores de ponderação
De acordo com a lei de regulamentação do novo Fundeb, os fatores de ponderação permaneceriam os mesmos em 2021, e até outubro deste ano a lei deve ser atualizada. A um mês do fim do prazo, não há indícios de que vai haver essa atualização, o que tornam incertos os fatores para 2022. Até o momento, o Congresso realizou audiências públicas sobre os fatores.
Todas as pessoas que ouvimos para esta reportagem concordam que esse é um aspecto importante ainda sem definição e que pode influenciar diretamente na redução de desigualdades ao destinar mais recursos para categorias historicamente subfinanciadas, como a Educação de Jovens e Adultos (EJA) e Educação Escolar Indígena e Quilombola. Eduardo Januário, professor da FEUSP, enfatiza que as conversas sobre os fatores de ponderação já acontecem – e sem dúvidas prometem ser um ponto de disputa. “Percebo que a discussão étnico-racial já está na mesa, o que é um progresso, mas é preciso ter garantias, como o CAQ, para assegurar que hajam recursos para de fato promover uma educação antirracista. O mercado já não renega questões como as de gênero e de diversidade sexual, mas as vê sob uma ótica da meritocracia e não como um processo libertário, de políticas afirmativas”, destaca o professor.
Ameaças ao financiamento educacional e PEC 13
Os fatores de ponderação devem ter o CAQ como referência, mas o CAQ – e sua fórmula de cálculo – ainda não estão nem perto de entrar em vigor. O Sistema Nacional de Educação (SNE), também ainda não saiu do papel. Para Nalu Farenzena, presidenta da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), avançar na implementação do CAQ e do SNE são talvez os maiores desafios da implementação do novo Fundeb, junto à derrubada da Emenda Constitucional 95 (EC 95, do Teto de Gastos), que vem, desde 2016, inviabilizando o aumento dos repasses reais para a Educação e, consequentemente, inviabilizando o cumprimento do Plano Nacional de Educação (PNE).
A pesquisadora ressalta que, nos últimos anos, a complementação do governo federal na Educação se mantém ou cresce via Fundeb (um repasse obrigatório e protegido inclusive da EC 95) enquanto são reduzidos os recursos não obrigatórios para os programas de assistência financeira na área, como os financiados pelo FNDE – Apoio ao Transporte Escolar, o Programa de apoio à Alimentação Escolar (PNAE), Programa do LIVRO DIDÁTICO, etc. “Se essa trajetória continuar, os programas vão se reduzir ainda mais. Isso vai totalmente na contramão do CAQ como referência para assistência financeira da União na educação básica, onde o que acontece na prática é a queda da assistência, excetuando-se o Fundeb”, diz ela. Os números não mentem: entre 2014 e 2020 o governo federal tirou quase 40 bilhões do orçamento da educação, segundo acompanhamento de Nelson Amaral, da Universidade Federal de Goiás (UFG).
E a situação pode ficar ainda pior caso a Câmara também aprove a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 13/2021, que anistia os gestores que não investiram o mínimo constitucional em Educação nos anos de 2020/21. O último episódio do podcast #FiqueDeOlho explicou que a proposta é um retrocesso, podendo alterar a Constituição de 1988 por conta de uma minoria de municípios que não cumpriram a regra durante a pandemia. “É um retrocesso não só pelo conteúdo, mas porque abre o precedente para matérias que, como essa, poderiam ser resolvidas em outro nível, banalizando as reformulações na Constituição e as próprias regras de financiamento da Educação”, aponta Nalu. O presidente da Undime Nordeste, Aléssio Lima, concorda e afirma que a PEC vai na contramão do espírito do novo Fundeb, debatido ao longo de anos junto à sociedade civil e movimentos e entidades do campo da Educação.
Quem também é contrária à PEC 13 é a deputada Professora Dorinha, que tem expectativas de que a Câmara consiga reverter o retrocesso que teve o aval do Senado. “Não há argumento possível para perdoar gestores que não investiram os 25% na Educação. Mesmo considerando as escolas fechadas fisicamente, muitas precisavam de recursos para fazer suas readequações. Temos 49% das escolas que sequer têm saneamento básico, sem nem falar de biblioteca ou laboratório. Como dizer que não há onde gastar os 25% da educação se tem tanto pra ser feito?”.
Em suma, um ano após sua promulgação, o novo Fundeb, um avanço incontestável para a garantia do direito à educação a todas e todos no país, segue precisando de grande mobilização social para garantir que de fato seja implementado.
Fonte: De Olho nos Planos
Foto: Igor Santos/Secom
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